Darlene
Fale sobre sua carreira de ator.
Marcos:
Eu tenho muitos anos de carreira, Darlene. Sou ator e professor também, são carreiras paralelas. Dou aulas de teatro numa instituição de ensino superior onde não tem nenhuma faculdade de artes, é mais um projeto. Estou lá há bastante tempo, é bem bacana. Funciona, né! Pelo menos as pessoas têm uma experiência teatral. De vez em quando um ou outro se encanta e parte pra vida profissional. É bem legal!
Comecei a fazer teatro há 32 anos, eu tinha 14. Fui no Sérgio Cardoso ver um espetáculo. Entrei, assisti e quando terminou eu estava aplaudindo e já pensando “Vou fazer isso aí…”, e no dia seguinte já estava procurando o que iria fazer… Vi o espetáculo mais catorze vezes, ia ver como era a repetição, já tinha em mim uma sementinha. Eu observava: “Ah! Hoje eles fizeram diferente!” ou “Ah! Perdeu o tempo!” ou “Ah! Teve que improvisar porque deu algum pepino!” — Acho que algum instinto já estava aflorado.
Conheci uma galera lá em Santo André, num grupo de teatro amador, e comecei a fazer teatro com eles e me encontrei: “É isso aí! Gostei desse negócio, quero entender mais”. Fiz vários cursos de teatro, cursos livres, oficinas aqui e ali, procurava onde tinha oficina e gente reunida, ia ver todos os espetáculos que eu conseguia. Depois fiz faculdade de Artes Plásticas. Olha que diferença, né?
Darlene:
Que beleza!
Marcos:
Fui me especializar em teatro. Fiz pós em teatro, curso de direção teatral, mergulhei na parte acadêmica para entender mais os meandros da profissão e não pra ser um acadêmico. Nunca foi meu interesse ser um acadêmico de teatro. Meu negócio é o palco. Dirigindo, atuando, iluminando, meu negócio é o palco! E fiz um monte de espetáculos como ator, diretor, várias atribuições no meu currículo; e a Cia. Expressa nasceu em 1996. Faz um tempo, tem 18… 17 anos… Minha matemática não é muito… (risos) Nosso primeiro espetáculo foi esse “Pessoa” mas era uma outra versão, outra montagem, tudo diferente. Ficamos em cartaz durante seis meses em Santo André, dentro de uma livraria. Depois demos umas passeadas por aí, FUNARTE, interior de São Paulo; ficamos uns dois anos com o espetáculo.
A Cia. Expressa só trabalha com espetáculo solo. O objetivo é o trabalho de interpretação do ator, buscar o refinamento dessa atuação. Então, nem sempre estou em cena, às vezes estou dirigindo ou escrevendo ou outras coisas legais, mas só espetáculo solo.
A gente tem dois projetos engatilhados: Em pedaços, nesse eu escrevo e dirijo e o Emerson Santana atua. Contamos a história de dois serial killers brasileiros. Contamos ao mesmo tempo as duas histórias que vai sendo costurada pela narrativa de vivência do ator. E outro chamado “Glória”, vou fazer como ator e Valmir Martins é vai dirigir, é a história de uma prostituta que se identifica com a prostituição mas comete um erro, apaixona-se, e resolve romper com o amor. E as coisas que vão acontecendo são muito interessantes. Claro que não vou contar o final, obviamente, mas o objetivo dela é romper com o amor. Acontece numa boate, no último show que ela vai fazer, para oficializar o rompimento com o amor, um show para clientes e não-clientes dela… (risos) A gente está em pré-produção, espero que logo esteja nos palcos ou nas boates, sei lá…
Darlene:
Quero saber se houve dificuldade ou não no processo criativo do seu personagem. Fernando Pessoa é muito complexo, não é?
Marcos:
Ainda é um processo muito complicado fazer Fernando Pessoa, muita responsabilidade. Fazer um personagem histórico como ele, que viveu, que foi humano, não é um personagem de ficção, com o peso que ele tem tanto no meio acadêmico quanto para os amantes da literatura.
Dizer esses textos é um trabalho de refinamento da palavra que exige muito. Eu leio o texto todos os dias, repasso, pra não perder a palavra porque tem muitos detalhes e nuances durante o ensaio, a colocação da voz, do volume da voz. Essa proximidade do público é um projeto meu e do diretor do espetáculo, a fim de ter as pessoas bem parte para que possa ter o tratamento da palavra, pra não ficar extremamente eloqüente. Esse trabalho começou em Março e, ofício do ator, busco cada vez mais o refinamento do meu personagem Fernando Pessoa.
Por outro lado é uma descoberta incrível! Não só no espetáculo mas de mim mesmo, como ser humano que se vê na condição de ator, com um personagem que tem angústias, dúvidas, medos… “Eu também sou assim, eu também sou assim, eu também sou assim!” Começo a me perceber no espaço do humano e essa proximidade da platéia potencializa muito, o olhar, de vez em quando eu sinto as pessoas fazendo coisas (caretas, expressões deslumbradas)… Eu falei uma coisa e você fez… “Ãh!” (imitou o gesto, suspiro e expressão de surpresa)
Darlene:
É? (risos)
Marcos:
Achei incrível quando você fez “Ãh!” (imita de novo o gesto, suspiro e expressão de surpresa)!
Darlene:
Nossa! Tem hora que esqueço quem é ator, personagem e texto de tão envolvida que fico…
Marcos:
Mas é isso! Chegou! Chegou na pessoa! Na semana passada as pessoas começaram a chorar! Que legal saber que a peça tocou essas pessoas. Esse que é o grande barato, a troca do humano, eu, ator e platéia. Isso do processo é uma coisa deliciosa! Aquilo que a gente passou meses ensaiando, todos os dias pra não perder a palavra, cuidando de todos os detalhes, quando chega nas pessoas é… “Acho que tou no caminho certo!”
Darlene:
O texto d’O Livro Do Desassossego” é extremamente melancólico, angustiante, como foi pra você? Em algum momento esse drama te sufocou?
Marcos:
Pra mim é algo assim: tou lendo e… “Ah! Que incrível! Como é que alguém consegue colocar em palavras aquilo que a gente sente?” Porque, às vezes, você quer explicar alguma coisa pra alguém e não consegue! “Eu tou me sentindo… Ãh… Hum… (estrala os dedos) Assim meio… Assim! Não é? Aí o homem vai lá (som com a boca e gesto com as mãos como se estivesse escrevendo uma carta)… Aí você faz: “Ah! Caramba! Ele conseguiu colocar em palavras aquilo que eu estava pensando! Aquilo que eu sinto há tanto tempo, aquele nó no peito, colocou em palavras…! É incrível! Vou ler de novo. Vou ler de novo!” E fico lendo, lendo, lendo… N’O Livro Do Desassossego eu sempre faço assim, óh…(gesto de quem tá pegando um livro grande, pesado, para folhear) Abro em qualquer lugar, leio. Abro de novo, leio, leio… Eu não fico lendo numa sequência, nunca li dessa forma.
Darlene:
Pois é! Também não consigo ler o livro todo de uma vez, não é uma narrativa, é conteúdo passível de reflexão constante, outro ritmo.
Marcos:
Não é narrativa, não é ficção, tá em outra categoria! Às vezes, eu anoto assim: “402”, grudo o post-it no livro, pra voltar na passagem que quero repassar. Vou lá e… 402. “Ah! (suspiro surpreso e aliviado) Faz mais sentido ainda esse negócio!” porque eu já vivi um pouco mais, né?
Tem uma coisa do ator que é assim: você não fica julgando o personagem. Ao julgar o personagem você pode dar um tratamento moralizante pra ele. Uma vez ouvi da dona Fernanda Montenegro que nós, no ofício, precisamos ser amorais. Não é? Como é que eu vou dar juízo de valor? Pode-se dar um julgamento que, às vezes, limita o seu entendimento daquele personagem e o seu trabalho criativo com ele. Depois que ela falou essa frase, pra mim foi: “Nossa! Que incrível! Faz sentido.” Faz muito tempo que eu ouvi isso dela numa palestra. Tento levar isso adiante. Não fico julgando se é angustiante ou se não é, vejo de outra forma — que incrível! Que potência que ele tem! Como ele consegue traduzir — e tento copiar isso no processo de cena. O diretor, de vez em quando, fala assim: “Ah! Vamos pra uma cena nova, de um outro texto que não está no espetáculo, pra gente fazer um exercício!” Aí eu vou lá, levo a cena, faço e “Meu, vamos colocar isso no espetáculo, ficou tão bacana!”; duas cenas feitas no espetáculo de hoje são novas.
Darlene:
Legal! Então se a pessoa veio hoje e voltar no próximo domingo poderá ver algo diferente!
Marcos:
Pode ser! Domingo passado a gente já tinha as duas cenas, mas mudamos a maneira de fazê-las. Isso que é bom do processo criativo ininterrupto, né? Pra conseguir um amadurecimento… O teatro nos permite isso. O diálogo com as pessoas e suas reações vai trazendo pra gente material como fonte de pesquisa para continuarmos refinando, burilando; às vezes, num ensaio passamos só uma cena, sabe? Estamos trabalhando um texto que não é linear, não segue uma lógica de tempo e espaço, nada disso.
Darlene:
Bacana também é a linguagem. Acho que a pessoa não precisa ter lido Fernando Pessoa pra entender e apreciar o espetáculo, pode inclusive se apaixonar pelo autor…
Marcos:
Espero que sim, né? (risos) Um dos nossos objetivos é lidar com o humano que há em cada um a partir do texto do Fernando Pessoa. Nesse caso, não estamos fazendo um processo de reconstrução histórica da obra do Fernando Pessoa ou do escritor. Eu não entro em cena de óculos e chapéu! A gente trabalha com alguns elementos em cena que é pra trazer essa poesia que já está na obra dele. E hoje foi providencial, choveu antes de eu entrar em cena, entrei com o guarda-chuva e todo molhado.
Darlene:
Cheguei a pensar que vocês tinham uma tecnologia pra fazer chover! (risos)
Marcos:
Não, não… Foi São Pedro mesmo que colaborou com a peça hoje. (risos) Encaixou! (Risos. Nesse momento a entrevista virou uma conversa coletiva com todos no local, também ficaram em dúvida se estava chovendo de verdade ou se era recurso do espetáculo.) É muito engraçado porque no começo do processo o Sílvio Vieira, diretor, queria que começasse com chuva, nem que fosse chuva sonora, queria, queria, queria… Depois acabou distanciando disso e desencanou: “Acho que só o elemento, o guarda-chuva molhado, a mala toda molhada talvez funcione melhor, né?” e eu “Olha, você é o diretor! Se você quiser, a gente grava e faz!”, no fim optamos por não ter essa chuva. E hoje choveu. Gente, que bacana! Só tenho a agradecer! (risos)
Darlene:
(risos) Demais, demais! E sobre as angústias presentes no texto, também acha que são atemporais, tem muito a ver com a sociedade hoje? O cara é de 1800 mas…
Marcos:
Sim e o que eu acho bacana é, por exemplo: uma vez um jornalista me perguntou se eu achava que um texto escrito em 1800 chega nas pessoas hoje, respondi que chega porque é do humano, não tá falando de algo que é distante da gente, talvez tenha mudado o suporte ou a maneira das pessoas expressarem essa solidão, fico pensando… Eu tava num lugar, e observei todas as pessoas nesse lugar, sentadas, cada um com o seu celular. Muitas pessoas assim numa área de convivência, na praia! Ninguém conversava! Inclusive famílias! Eu também tenho o meu celular, acesso o Facebook, né? Não sou dependente e espero não ficar! Isso me faz pensar no teor da sua pergunta. Acho que só mudou o suporte porque a solidão continua. Penso que se o Fernando Pessoa vivesse hoje, teria um blog, facebook, twitter, teria vários perfis ! Todos os heterônimos seria um perfil pra ele poder se comunicar de maneiras diferentes. Quantas pessoas você conhece que tem fake? Ficam escrevendo lá como se fosse “A Gostosona”ou “Boy Magia” ou outra coisa!
Darlene:
Bancam um personagem! A liberdade que, às vezes, não encontram na vivência física, conseguem no ambiente cibernético. É um escape…
Marcos:
É, e assim, ele estudioso, literato, alfabetizado em inglês, português, francês, leu todos os clássicos da época dele, tinha uma bagagem cultural incrível! Acho que a condição humana é atemporal. Só acho mesmo que o suporte muda, que a tecnologia pode até acentuar alguma característica. Não sei se estou equivocado, mas acho que há algum tempo vivemos a era do individualismo, mesmo você tendo o botãozinho “compartilhar”. Aquele compartilhamento é outro e pode não existir. Este compartilhamento aqui, óh, esse que nos estamos empreendendo agora é efetivo. Somos forçados, empurrados, estimulados a ter esse tipo de comportamento pela mídia, publicidade, mercado, capitalismo, pelo trânsito; é uma selvageria!
Darlene:
E o coletivo permanece no discurso.
Marcos:
Penso que a gente vive uma selvageria individualista ou para o ápice do individualismo, de não pensar mais no outro… E o que a gente tem de tecnologia hoje talvez acentue essas características que são humanas e foram estimuladas pelo dia-a-dia massacrante que todo mundo vive, né?
Darlene:
E pensando no massacrante, na estimulação do consumismo, lembro que o Fernando Pessoa fala sobre o não ter nada, não ser nada, anulando o sentimento de posse com desprendimento muito grande, contraditório ao comportamento consumista de “preciso ter pra ser” e não de “ser pra ter ou não ter”…
Marcos:
Ah! Ser e ter hoje é cada vez mais estimulado, tudo colabora pro ser humano pensar no ter. Ter o quê? Objetos materiais na verdade! Coisas, muitas coisas, e ter coisas não garante um bom desenvolvimento humano, individual ou coletivo. Se eu já fiz, tá bom. Eu tenho, eu tenho, eu tenho… Sim, amigo, mas você é o quê mesmo? Ah! Eu sou… Talvez a pessoa diga “Ah! Eu sou [a profissão X]”, mas você não é sua profissão apenas, sua profissão talvez seja um dos meios de comunicação com os outros, pra mim, é o teatro, porque o teatro me aproxima e faz com que eu tente enxergar o outro, que promove o encontro real de “olho no olho” com o outro, não só em cena; mas nós somos mais que a nomenclatura, a profissão, senha de banco, quantidade de bens acumulados… Que no final das contas serve para o quê mesmo? Sempre me pergunto…
Darlene:
Talvez pra marcar território?
Marcos:
Que nem é tão seu assim, né? (risos)
Darlene:
Você tem preferência por algum dos heterônimos?
Marcos:
Não tenho preferência não. Cada um tem particularidades interessantes. E o Fernando Pessoa pela esquizofrenia, por tudo que a gente conhece dele, que se diz e que a gente vê pelas obras, tinha características muito diferentes para construir esses heterônimos. Caeiro é muito diferente do Campos, que é muito diferente de Bernardo Soares que nem cito no espetáculo, Ricardo Reis e vários outros que são mais conhecidos. Inclusive ele escreveu assinando como mulher. Não só Nelson Rodrigues! Nem sei se eu chamaria de heterônimo, mas escreveu com outros nomes outras coisas que ele fez. Por exemplo: ele teve um caso com uma menina, por aí dizem que ele nem encostou na moça, com muitas aspas no amor e tal, tem um livro que são as cartas de amor trocadas com ela. Chegou uma hora que ele parou de escrever como Fernando Pessoa e assumiu um dos heterônimos pra ela, porque ele não dava conta de dizer tudo o que queria apenas como Fernando Pessoa. Pra você ver até onde ia a esquizofrenia do moço, não era uma coisa leve… (risos) Muitos Valiuns, muita tarja preta! (risos) Ele é muito tarja preta. Eu não prefiro nenhum porque cada um deles têm características bacanas e diferentes. No espetáculo a gente não traz os heterônimos, traz o Fernando Pessoa falando sobre os heterônimos, sem trechos de nenhum heterônimo, e isso foi opção, não tem poema no espetáculo. Opções que escolhemos para aproximar mais o Fernando Pessoa do humano que havia nele do que na obra. A gente centrou nossas pesquisas na pessoa no Fernando. Tanto que a gente fica brincando com isso: Fernando e suas pessoas, porque ele, ele mesmo, não é só ele. E esse quadro depressivo dele nem chamaria de bipolar, mas de polipolar. Porque às vezes ele mesmo estivesse num nível de consciência e logo depois num outro nível de consciência, sem ser heterônimo. A gente usa isso no subtítulo do espetáculo. A gente tenta dar conta de um pedacinho, porque é muita coisa. Ele já é um universo, a obra dele então… Ainda hoje existem pesquisadores lá em Lisboa tentando decifrar escritos de Fernando Pessoa. Em nossa cenografia só tem folhas escritas porque ele escrevia compulsivamente em qualquer objeto, por isso escrevi em mim. Para a peça nem aprofundei tanto nos heterônimos. Pra fazer o personagem, o próprio Fernando Pessoa, a gente reuniu muito material e ainda tem muita coisa pra mexer, sabe?
Darlene:
Então não pode acabar domingo!
Marcos:
Não! Acaba a temporada aqui, no Pinho de Riga, a idéia é seguir com o espetáculo em vários lugares.
Darlene:
Ah! Que lindo! Parabéns pelo espetáculo e isso vai pro blog, com certeza!
Marcos:
Muito obrigado! Que bom! Fico feliz!